segunda-feira, maio 08, 2006

2x1

Kafkaneando

Foi o seu melhor post. Dedicou-se a semana inteira para conceituar teoricamente o trabalho que realiza há dois anos. Pensou que, no mínimo, poderia trazer ao veículo um pouco de discussão sobre o fazer da encenação, visto que a maioria dos colunistas se dizem atores e até se utilizam de alguns desses conceitos em seus trabalhos inconcientemente. Se lessem, poderiam ir além. Nada.
Na sala de sua atual residência quase transformada em quarto, sentado na antiga cama de seu amigo reutilizada por outro e perpendicular ao sofá-cama onde dorme - direito adquirido pois, apesar do meio, mantinha-se limpo - ouve o idealizador do veículo discorrer sobre os outros autores que não utilizam a palavra da semana de modo adequado. Não era a primeira vez que ele voltava a esse assunto. Propositalmente, naquele dia, tinha postado sem a palavra da semana, essa porcaria de palavra da semana; justamente para ser criticado por seus colegas, ou para testar se eles leriam aquele texto que julgou bom, mas inapropriado à preguiça ou à facilidades. Amenidades não era com ele.
Na semana seguinte esqueceu de postar. Seu dia é segunda-feira, era feriado e isso não tinha a menor importância para ele pois sempre estava a labutar. Mas somente às oito horas da noite, após sair do intenso ensaio, lembrou-se que deveria postar.
Parou.
Sentou-se em frente ao computador para escrever algumas palavras para os próximos dias. Pensou em seus dias que, apesar da falta de rotina, eram monótonos. A primeira frase depois de algum tempo começava assim: "Foi seu melhor post".
Escreveu mais algumas palavras sem entusiasmo decidindo que deveria terminar aquilo com um adjetivo, resumindo como sentia-se: enfadonho.

A Cabrocha

Encontrava-se em um momento de ruptura, daqueles em que se sente que tudo pode acontecer, no limite de suas emoções. Sentado à meia luz naquele beco, tomou um último gole de pinga quando viu que as pedras portuguesas da calçada mudavam de cor: ora pretas todas, ora brancas todas, ora revezavam-se em diferentes coreografias; sempre preto e branco. Levantou-se como um pobre animal a ser abatido, coxo, mas em seu olhar lúgubre ainda guardava um brilho especial. Com a aliança no dedo viu a poucos metros abaixo do poste uma silhueta feminina: linda. Aproximou-se e pôde sentir um cheiro misterioso: como essa mulher pode cheirar tão bem nesse ambiente repassado de aguardente que tresanda? Ela o conduz até um leito deserto e frio como uma noite de geada, embora lá fora estivesse um mormaço de molhar os suvacos e as virilhas. Beijou nuca, lábios, mãos e braços: aquela figura pálida o deixara entorpecido. Na sede insaciável do gozo beijava o doce veneno do Boa Noite Cinderela, colocado por ela estrategicamente em seu corpo: fosse embora veneno, ele bebia o mel da flor até cair.
Acordou com o rosto sujo de sangue, a barriga doía. Os bolsos vazios.
Andou e perdeu na escuridão da madrugada, sangrando, seguido por uma matilha de cães.

Um comentário:

  1. Frei Betto – Eram mais ou menos quantos companheiros na travessia até Sierra Maestra?

    Fidel Castro – Seis ou sete. Aproximamo-nos de uma casa, falamos com um cidadão e foi ele quem arranjou o encontro daquele grupo com o arcebispo. Ao amanhecer, aqueles companheiros seriam apanhados pelo arcebispo. Eu e os dois que estavam comigo nos separamos deles, nos afastamos uns dois quilômetros daquele lugar, no propósito de, à noite, pegar a estrada que conduzia à baía de Santiago de Cuba. Porém, o exército soube, talvez tenha interceptado a ligação telefônica entre aquela família e o arcebispo, e bem cedo, antes de amanhecer, patrulhas ocuparam toda aquela região,inclusive as proximidades da estrada. Estávamos a dois quilômetros e cometemos um erro que, até então, não havíamos cometido em todos aqueles dias. Cansados, tínhamos que dormir nas piores condições, nas ladeiras da montanha, sem saco de dormir ou coisa parecida e, justamente naquela noite, encontramos uma pequena cabana, de quatro metros de comprimento por três de largura, o que aqui chamam de vara em tierra, lugar onde se guarda material de trabalho. Para proteger-nos da neblina, da umidade e do frio, decidimos ficar ali até amanhecer. De manhã, antes de despertarmos, uma patrulha de soldados entra na cabana e nos acorda com os fuzis sobre o peito. Ser despertado pelos fuzis do inimigo foi conseqüência de um erro que jamais deveríamos ter cometido.

    Frei Betto – Nenhum de vocês montou guarda?

    Fidel Castro – Não, ninguém montou guarda, os três dormiam, entende? Estávamos um pouco confiantes, pois havia uma semana que, apesar de rastrearem toda a região, continuávamos furando o cerco. Subestimamos o inimigo, cometemos um erro e caímos em suas mãos. Certamente interceptaram o telefonema, não posso admitir que as pessoas com as quais fizemos contato nos tivessem delatado. É certo que cometeram indiscrições, como a de falar ao telefone, o que alertou o exercito que, imediatamente, enviou as patrulhas que nos capturaram. Do jeito que aqueles indivíduos andavam sedentos de sangue, teriam nos assassinado de cara. Porém, ocorreu uma incrível casualidade: havia um tenente negro chamado Sarría, que não era assassino e tinha certa autoridade. Os soldados estavam excitados, nos amarraram, apontaram os fuzis contra nós e queriam matar-nos. Pediram a nossa identidade e demos outro nome. Vi logo que não nos reconheceram.

    Frei Betto – o senhor já era muito conhecido em Cuba?

    Fidel Castro – Relativamente, mas por alguma razão aqueles soldados não nos reconheceram. Não obstante, queriam matar-nos e, se tivéssemos nos identificado, teriam disparado. Começamos a discutir com eles. Diziam que éramos assassinos, que queríamos matar soldados e que eles eram os continuadores do Exercito Libertador. Perco um pouco a calma e retruco que eles são os continuadores do exercito espanhol e que somos nós os verdadeiros continuadores do exercito libertador. Nós nos dávamos por mortos; eu não imaginava a mais remota possibilidade de sobreviver. Durante a discussão com eles, o tenente interveio e disse: “Não disparem, não disparem”. Impôs-se aos soldados, enquanto repetia em voz baixa; “Não disparem, as idéias não se matam”. Três vezes aquele homem repetiu: “As idéias não se matam”.

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