terça-feira, dezembro 11, 2007

CARTAS SOBRE A EDUCACAO ESTÉTICA DA HUMANIDADE
A noção de jogo em Schiller, sua relevância para o mundo contemporâneo e outras reflexões.

por Raoni Seixas

“Dos indígenas do Brasil, não havia nenhuma tribo que pudesse escravizar alguém. Por que o que fazer com um escravo num sistema social em que um homem só produz o que consome? A escravidão só se torna possível quando um homem pode produzir mais do que consome”.
Darcy Ribeiro


“O impulso não tem por alvo jogar ‘com’ alguma coisa; antes, é o jogo da própria vida – para além das carências e compulsões externas – a manifestação de uma existência sem medo e ansiedade e, assim, a manifestação da própria liberdade (...) Numa civilização autenticamente humana, a existência humana jogará em vez de labutar com o esforço, e o homem viverá exibindo-se em vez de permanecer vergado à necessidade”.

Herbert Marcuse


“O homem deve dar a si mesmo a forma de uma obra de arte, deve tornar-se em ‘forma viva’ , ‘em bela alma’. Neste sentido , o homem deve restabelecer em si a humanidade íntegra e perfeita que foi desfeita pelos dilaceramentos da civilização especializada”.
Anatol Rosenfeld

“Nós somos porque somos. Nós sentimos, pensamos ou queremos porque além de nós existe algo diverso.”
Schiller



Como método, sinto necessidade de expor alguns fatores históricos anteriores a Schiller, precisamente dois séculos antes, para tentar compreender a importância de seu projeto filosófico em sua época, o valor que tem se relacionarmos com os paradigmas que se afirmaram e, também, a fim de inserir e relacionar alguns fatores do contexto histórico na reflexão sobre a referida obra.
No início do séc. XVIII, a Europa prosseguiu embalada pela Revolução Mercantil que teve seu ápice no fim do séc. XV , quando algumas nações se lançaram ao mar em busca de novas rotas comerciais, instalando, cada um com suas peculiaridades, protocélulas de suas matrizes originais nos novos terrenos descobertos. A Igreja Romana forneceu o arcabouço ideológico da colonização aos países ibéricos alçados a categoria de Impérios Mercantis Salvacionistas – que acreditavam que podiam “salvar” aqueles povos; um equívoco, pois partiam do pressuposto de que aquelas populações nada conheciam, ou simplesmente eram incapazes de reconhecer e respeitar uma outra cultura que aqui se desenvolvia. Outros países europeus, que sofriam menos com a influência da igreja, também foram em busca da nova terra e do que esta poderia lhes oferecer.
O sucesso do projeto de colonização dessas áreas proporcionou à Europa (principalmente às classes administradoras dos Estados detonadores deste processo) o aumento da oferta de matéria-prima para produtos e, conseqüentemente, o aumento de suas riquezas. Para esses que chegavam, a nova terra era um vasto terreno a ser descoberto e explorado, repleto de riquezas que se ofereciam. Aos que aqui estavam, quando não fugiram ou morreram de doenças que desconheciam, foram fatalmente escravizados e incorporados a um projeto civilizatório extremamente diferente de sua visão de mundo. Foi o encontro de um povo que visava a benefícios comerciais em detrimento de outro que vivia de maneira harmoniosa com sua cultura e com a natureza, onde pela natureza aqueles homens organizavam-se, podendo considerar ambas, natureza e cultura, como uma só coisa, pois é difícil determinar onde termina uma e começa outra. Daí o espanto dos nossos índios, orgulhosos de sua beleza, que em sete mil anos nunca precisaram estocar comida, que não precisavam exceder sua produção, já que todos os mecanismos de sua subsistência estavam a seu alcance, ao verem aqueles homens brancos derrubando árvores e retirando coisas para levar além-mar. Ainda assim, tal era sua o seu entendimento do mundo que, inicialmente, deixaram os homens brancos levarem o que precisavam. Somente com o impacto das doenças e com o desequilíbrio ambiental, seguidos dos trabalhos forçados, é que essas populações começaram a resistir e / ou fugir.
Com as bases da Revolução Mercantil e com a expansão da economia, a Europa deu início a mais uma etapa progressista, que modificou toda a estrutura social: a Revolução Industrial. A estrutura artesanal nos processos de produção de base familiar foi substituído por máquinas que aumentaram a produtividade promovendo um grande excedente de produtos. As sociedades em que os camponeses participavam de todo o processo de produção, desde a matéria-prima até o produto final, mudaram para uma nova ordem, a industrial, onde a divisão do trabalho visa ao aumento da produtividade e a mão de obra deve ser especializada.
Existiu aí o maior momento de ruptura: por natureza a razão humana, é uma só, é una, uma totalidade integrada. O trabalho é um ato de intervenção no mundo e este era visto como um todo, em todas as suas etapas; tinha no seu processo de produção o domínio do próprio destino. A sociedade industrial impôs ao homem uma nova realidade fragmentada pela divisão racionalizada e especializada do trabalho, em que o individuo é responsável por apenas uma parte da produção, transformando sua maneira de ver e de estar no mundo. Diante desse contexto, o trabalho se distanciou de um sentido complementar do sentido da vida e de unidade social. Estabelece-se o problema político que o progresso da civilização colocou para o homem moderno: o conflito entre as faculdades superiores e inferiores.O homem não se reconhece mais como parte de uma coletividade, mas como parte em um processo de produção de um produto, projetando na sociedade sujeitos isolados e individualistas.
A Europa vivia um momento de transformação e a Igreja Romana utilizava a arte para impressionar e dominar. Os reis e príncipes europeus compartilharam da mesma ideologia, que buscava na arte não apenas um objeto de decoração, mas também uma forma de aumentar sua influência sobre os súditos. Para isso, a experiência estética da arte assumia a responsabilidade de transmitir valores morais ligados à religião e ao comportamento ideal que os súditos deveriam ter perante o Estado e a sociedade. Os países sob influência do protestantismo, embora não tenham adotado o mesmo sistema no que se refere ao conteúdo religioso, também foram influenciados por uma relação de finalidade, construindo suntuosas catedrais que não visaram a evocar visões de outro mundo, mas serviam como local para congregação dos fiéis ao culto.
Nesse contexto, o mercado de arte estava basicamente a serviço das classes que desejavam contratar os serviços dos artistas para diversos fins, ou seja, sua “finalidade era fornecer coisas belas às pessoas que as queriam ter e desfrutar” .
O processo de observação do espectador perante a obra de arte não se dava só pela relação do mesmo com a obra em si, mas por uma relação de utilidade para a razão prática, tendo por objetivo a consecução de fins e propósitos específicos. A lógica sobrepujava a estética na experiência artística. A apreensão passiva do que “quer dizer” a obra, a compromete com valores estritamente ligados a cognição de signos de utilidade para a realidade. O jogo é, então, determinado por conceitos ligados à razão de praticidade da obra. O sensível é, nesse jogo, uma “faculdade inferior e mesmo ínfima, na melhor das hipóteses, a mera substância, a matéria-prima para a cognição, competindo às faculdades superiores do intelecto organizá-las”.
Diante dessa nova e fragmentada reorganização social das sociedades modernas européias, Schiller, a partir do aprofundamento de seus estudos na obra de Kant, vai propor uma novo rumo para a civilização, visando a reconciliar o homem com sua unidade perdida.
A função estética é um dos pontos principais do sistema crítico da razão kantiana, em que a imaginação é a faculdade central da mente. A arte é o jogo em que a natureza se torna suscetível à liberdade, mediando a passagem da razão prática, vontade, para a razão teórica, das leis morais; ligando as faculdades inferiores do desejo às faculdades superiores do conhecimento. A contemplação estética é o campo onde a nossa sensibilidade e imaginação concordam em um jogo harmônico com a inteligência e o conhecimento conduzindo à liberdade. A liberdade pressupõe um mundo inteligível não determinado pelo reino da natureza e que deve exercer um efeito de realidade sobre ela. Por se dar de forma livre, a contemplação estética é desinteressada, e o jogo harmonioso e integrado de todas as funções mentais do homem suscita o prazer estético e é a faculdade do gosto quem julga o objeto. Pela capacidade de propiciar tal jogo, o objeto é considerado belo. A beleza da percepção estética da “forma pura” é dada livre de qualquer conceito da razão prática. O prazer deriva não da matéria e do propósito, mas do jogo da imaginação com a “forma pura” (liberta da relação de uma finalidade prática imediata). A arte reconcilia sentido e intelecto, natureza e liberdade. O interesse especulativo da razão só pode ser satisfeito em termos práticos e a moralidade é o reino da liberdade, em que a razão prática se realiza, segundo leis auto-autorgadas.
Embora o sistema de Kant inicie um novo entendimento da dimensão estética, em sua obra, procurou estabelecer uma funcionalidade e áreas de atuação entre diversas funções mentais, esgotando, dentro de rígidos limites estabelecidos pelo seu método, o esforço para reaver o conteúdo reprimido da experiência na arte. Para alguns de seus críticos, como Schiller, o jogo na experiência estética vai além de qualquer determinismo oferecido por um esquema teórico de uma estrutura lógica.
Influenciado pelos estudos em Kant, Schiller não procura diferenciar claramente as diversas funções mentais e seu campo exato, mas procura se ater ao jogo em que o homem articula de forma fluida e dinâmica os impulsos e a vontade moral, acentuando o caráter instintivo da função estética. Nas cartas sobre a Educação Estética da Humanidade, expõe que o livre jogo entre essas faculdades mentais, na experiência estética, possibilita a criação de um novo principio de realidade liberto da escravidão da matéria dominante e coerciva, em um “movimento livre que é, em si próprio, um meio e uma finalidade” , e esta finalidade é a liberdade. A experiência estética é um principio que governa toda a natureza humana porque é uma forma de comunicar que age livre para uma comunicabilidade universal e, por isso, pensa em um “princípio universal de beleza” comum a todos os homens, que não pode ser determinado por um “princípio objetivo do gosto”. Em uma sociedade que submeteu o sensível à razão, rompendo a unidade da experiência estética de outrora, que pressupunha o livre jogo entre prazer, sensualidade, beleza, verdade e liberdade, a humanidade deve reconciliar ambos os impulsos a fim de que suas potencialidades possam jogar livremente, ou seja, Schiller propõe um duplo jogo, um jogo para o jogo: a partir da dinâmica conciliadora entre impulso formal e impulso sensual, a arte propicia uma liberdade na realidade. Livre da alienação da divisão do trabalho e reconciliado com seus nobres sentimentos, o homem está livre para jogar com suas próprias faculdades e potencialidades com a natureza, e só jogando com elas é livre.
Schiller também critica os excessos do desenvolvimento da Revolução Francesa, cujas crueldades apagaram cedo seu entusiasmo por ela, não admitindo a solução revolucionária para o problema político que procura redimensionar. Não cabe ao Estado moral, originado da brutalidade da revolução, criar uma nova humanidade, mas cabe a nova humanidade, íntegra e perfeita, reconciliada com o livre jogo de suas potencialidades sensuais e racionais, em conformidade com seu ser, criar um novo Estado moral do homem estético. É pela educação estética que os cidadãos serão aptos a integrarem um estado moral sem ser necessário recorrer à força. O problema político da humanidade é educacional. Por isso, a estética é o campo onde o homem redimensiona sua realidade na realidade, fundando em si um projeto de transformações constantes. Esse livre jogo de suas potencialidades para além da necessidade disponibiliza o indivíduo para a coletividade através do compartilhamento de idéias, abrindo diversas formas de percepção da vida, desdobrando uma revolução do sujeito na sociedade, fazendo da experiência estética uma experiência política de liberdade.
“O livre jogo estético e a universalidade do julgamento de gosto definem uma liberdade e uma igualdade novas, diferentes das que o governo revolucionário quis impor sob a forma de lei: uma liberdade e uma igualdade não mais abstratas, mas sensíveis. A experiência estética é a de um ‘sensorium’ inédito, em que se abolem as hierarquias que estruturavam a experiência sensível. É por isso que a experiência estética traz consigo a promessa de uma ‘nova arte de viver’ dos indivíduos e da comunidade, a promessa de uma nova humanidade.”
Schiller remete aos gregos o legado de uma sociedade íntegra e perfeita, que “caso quisessem prosseguir no sentido de uma formação mais alta deveriam, como nós, abandonar a totalidade de seu ser e perseguir a verdade por totalidades separadas.” Em investigação semelhante, Hans Sachs, em estudo de 1933, procura revelar que o narcisismo é um princípio de realidade da civilização grega, em que a libido não permitiu a mecanização, embora os gregos fossem habilitados de capacidade e conhecimento para criar uma tecnologia mecânica . Aqui também podemos citar, pelos motivos expostos nos primeiros parágrafos, que a civilização americana pré-colombiana, principalmente os povos da região onde hoje chamamos de Brasil, também configuraram sociedades em que homem e natureza vivem em conformidade e que não romperam com o elo de sua natureza ideal.
O progresso tecnológico continua se desenvolvendo de forma rápida e, os homens cada vez mais têm sofrido constantes revoluções na área do conhecimento cientifico, que mais funciona em torno da estratificação de categorias, permitindo ressaltar ambigüidades, isolar patologias e selecionar vias alternativas em consonância com a marcha evolutiva da sociedades industriais ; do que com o livre jogo das potencialidades humanas para a liberdade. Em detrimento ao projeto schilleriano, a sociedade atual ainda tem como maioria no mercado experiências em que o homem pouco desenvolve o conhecimento sobre a espécie em si, e tão pouco eleva-se para além de si ou para o jogo e o desenvolvimento de qualquer potencialidade, totalmente comprometidas em manter estruturas políticas vigentes, aumentando a estratificação social por meio de uma visão de mundo hipócrita pois pretende ser justa e igual para todos e, para isso, pretende unir a humanidade não pelo que tem de comum, mas para o que tem de diferença entre os indivíduos.
Esse meio cultural opressor da atualidade encontra outro problema de nível crucial e de conseqüências mundiais: a destruição de nichos ecológicos e a poluição dos recursos naturais causados pelos constantes progressos que ameaçam a civilização. Ainda assim, as indústrias vêem, apenas, oportunidades financeiras, procurando inculcar nos cidadãos certas medidas que consideram positivas, criando um mercado que explora o tema da extinção do planeta, sem que isso tenha, ainda, uma conseqüência concreta para a sociedade. Para mais esse dilema que agora nos surge como fatal, é preciso um reexame profundo da situação, a ser realizado pelas sociedades, e uma mudança radical das bases industriais que tornaram o ambiente cultural extremamente opressor e que agora ameaçam toda a espécie humana. Para esse reexame, a obra de Schiller é fundamental, pois surge no tempo junto à raiz do nascimento do problema do homem moderno, e revolucionária, já que o livre jogo das faculdades mentais da humanidade objetiva a liberdade comum a todos os indivíduos.

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