quinta-feira, dezembro 25, 2008

Diário de um Toxicômano - Dia 32



Tudo que me recordo agora é de uma grande confusão acentuada pela visita que fiz à exposição do corpo humano. Me pareceu fascinante a possibilidade de desmembrar órgãos e partes do corpo para entender melhor seu funcionameno e, tanto foi a minha curiosidade, que me dirigi ao Museu Histórico naquele domingo de sol. E foi, caminhando pelos stands, que começou o meu declínio.

Tenho, por exercício, pensar sempre um outro ponto de vista sobre um determinado assunto. Quando por exemplo, em um debate, uma corrente de pessoas defende fortemente uma idéia, busco pensar outros argumentos que possam confrontar a tese, mesmo que eu concorde com ela. E foi olhando para aqueles corpos plastificados e para os olhares ávidos dos visitantes que lotavam o lugar amontoando seus corpos para tentarem ver a si mesmos, que começou a minha náusea, com ápice no setor em que mostrava um corpo cortado horizontalmente, parecendo a carne assada que havia comido no almoço. Foi ali que percebi que embora aquilo tudo fosse realmente impressionante, meu interesse, definitivamente, consiste em outro fator. O método cartesiano de apresentar o funcionamento do corpo como uma máquina, com veias, artérias e carne plastificadas, não dá conta do debate principal e mais importante sobre o que é a existência humana, esse alguma coisa que nos foge completamente, e que tentamos buscar e entender a todo instante. E embora nosso organismo funcione de maneira bem semelhante ao organismo de um pássaro, a existência humana em si é uma experiência bem mais complexa do que a de outros animais. Viver utrapassa qualquer entendimento.

Durante grande parte da visitação questionei me sobre a vida daqueles defuntos agora heróis. Qual seria a história do corcunda? E do rapaz carne assada? Vim saber depois que todos eles eram chineses que haviam "doado" seus corpos para estudo. A vida deles foi embora, acabou, mas seus corpos hoje estão imortalizados visitando mais museus do que qualquer chinês médio poderia conhecer. Tudo que eles foram não interessa mais, para mim eles são apenas veias e artérias que me lembram o quão estou vivo. Deveria ter suspeitado dos olhos puxados e dos olhos azuis que tornavam tudo aquilo mais simpático, talvez o olhar triste de um chinês poderia causar uma estranheza não interessante ao foco principal da exposição.

O ser humano é movimento, é sangue que circula na veia, é sexo, é medo, é atenção e tudo mais, é encontro, é o outro, é contato, pelo ouriçado, é vida. E tudo mais ali só me trazia morte.