segunda-feira, abril 03, 2006

Terça-feira

Celular. 8:00
Piru mea-bomba. Dor no ombro esquerdo. Colocar chinelos. Guardar lençol. Colocar colcha. Pegar toalha. Pegar roupa – separadas no dia anterior. Banheiro. Tirar chinelos. Abrir torneira. Água. Piru mea-bomba retrai fluxo sanguíneo: Xixi. Alivio. Shampoo. Sabonete. Água. Escova de dentes. Pasta de dentes. Cuspir. Condicionador. Listerine. Cuspir. Água. Fechar torneira. Toalha. Camisa. Cueca. Calça. Meias. Sapato. Mochila. Conferir: carteira, chaves, celular.
Porta, porteiro, rua.
Subiu no ônibus. Pegou o livro de bolso: Vidas Secas. Ao retomar a leitura do trecho da doença de Baleia, reparou que passou ao lado esquerdo do ônibus um motoqueiro com uniforme da polícia do Exército. Alguns segundos e o Segundo. E mais um.
O quarto parou ao sinal e mandou o ônibus seguir. Não seguiu ora, estava no ponto, pegando passageiros:
- Agora não vai mais não! – disse o PE.
De repente, todo o fluxo de veículos da Rua Jardim Botânico estava parado ao lado direito. Ao lado esquerdo, Passam dois blindados do Exército, seguidos de pelo menos vinte veículos com uns trinta homens armados dentro. Uma sequência de imagens desconexas fizeram um mosaico em sua cabeça: a batalha de porrolho que vencera contra os meninos da terceira série, a coleção de armas de plástico que tinha e que sua mãe jogou fora, o revólver 38 do pai, da música do Toquinho. Fitava os olhos dos homens dentro dos caminhões: meninos, mais novos que ele. Olhou todos que podia. nenhum sinal de preocupação. Dentro do ônibus, ouve o primeiro grito. Estava no 592: o destino final do ônibus e dos meninos armados era o mesmo. Suas pernas ficaram bambas, o coração bombeou sangue mais rápido ao mesmo tempo que o peito contraía. As pupilas levemente dilatadas embraqueciam com a lembrança da televisão: há dois dias passou o documentário sobre meninos que trabalham com tráfico. Todas as famílias brasileiras deviam ter visto… A população olhava sem reação. No ônibus, pessoas choravam preocupadas e ele um misto estático de idéias e sentimentos, observava. Os veículos não cessavam, transeuntes olhavam impávidos, sentiu vontade de gritar. Ontem mesmo conversara sobre a sensação de impotência perante os fatos da vida. Mandou torpedos para algumas pessoas. Respirou fundo a angústia coletiva. Acabou-se os blindados, os meninos. Os últimos a passar foram duas precárias ambulâncias que o fizerem se sentir na Primeira Guerra Mundial.
Carros acuparam os espaços vazios deixados pelos veículos militares rapidamente.
Ao chegar ao trabalho, fogos. Abre e-mails, manda e-mails. Tiros. Mais fogos. Tenta achar alguma informação nos jornais enquanto resolve algumas pendências do dia anterior, reserva na Catherine Hill seu material para a aula de caracterização na faculdade. Um estrondo enorme em frente à porta do trabalho: não, não era em frente ao trabalho.
Partiu em direção à Copacabana. Ao todo, o material custaria duzentos reais, valor exorbitante para quem ganha quinhentos. Apelou para os pais que, surprendentemente deram pronta ajuda. Duzentos reais em maquiagem. Exército nas ruas. Televisão. Tô atrasado pra faculdade. Copacabana.
Esforçava-se para fazer o círculo como a professora falava: na cabeça, dando a sensação de protuberância. “Duzentos reais e não parece nem protuberância, nem círculo e mal reconheço minha testa”. Agora um cone realçando a mandibula dando a ilusão de que dá para colocar um objeto por dentro da face. Tá lá o cone, cadê a ilusão? Ao menos um par de olhos verdes, com uma bola que também não parecia protuberância e um cone no rosto o fitava pelo espelho, assim como o par de seios ameaçava fazer o mesmo. Outros cones e círculos estavam a volta, mas era o par de olhos azuis e os seios que mais o chamavam a atenção. Esqueceu-se um pouco do exército. Lembrou-se que teria de fazer um texto para o blog que o Rafael deu idéia de juntar e que acabara de mudar o nome para uma sigla escrota. Escreveria toda segunda, outros amigos também escreveriam em outros dias, sabia que isso seria muito estranho: não sabia ao certo porque havia topado, apesar da convivência é provável que não tivesse muitas afinidades literárias com alguns amigos; mas seria interessante testar um novo veículo que o instigasse a escrever uma vez por semana. Duzentos reais. Gostava do Rafael.
Saiu para beber água três vezes na segunda aula. Não teve a terceira aula.
Saiu da faculdade novamente em direção à casa. Não havia almoçado, o est âmago roncava. Sentia os cabelos lhe puxando o couro cabeludo, as têmporas pareciam inchadas, tão quentes como outras partes do corpo: as pernas e o saco pareciam dilatados, o piru, ao contrario, não acompanhava o mesmo processo. Não teve nenhuma aula interessante. O exército na rua era quase uma lembrança distante, o rosto ainda um pouco sujo por causa da maquiagem, a segunda aula não lhe prendeu a atenção. O jornal no caminho avisava da viagem especial de um brasileiro, um brasileiro no espaço. É. No mesmo veículo todas as informações do mundo: final do campeonato carioca, Guerra do Iraque (os EUA preferem Guerra contra “o terror”), Geraldo Alckmin candidato, Luana Piovani e sua peça nova, documentário.
Chega à casa. Cumprimenta o cachorro que nem vira pela manhã. Sua camisa vai sujando na altura do peito: “esse cachorro tá crescendo”. Passeiam. Algumas mulheres bonitas. Voltam.
Banho.
Televisão. Desliga a televisão. Liga de novo. Aperta um fumo. O corpo vai se encaixado ao sofá. Pensamentos soltos: lembrava do exército, dos Comandos em Ação, duzentos reais, Iraque, olhos verdes refletidos no espelho, aula chata, aula que não teve, documentário na televisão, astronauta brasileiro, está chegando meu aniversário, Luana Piovani, está chegando a copa do mundo, Geraldo Alckimin, já passou o carnaval, blog.
Os olhos levementes cerrados, o cigarro no cinzeiro embala-o, nina-o na sua confusa relação de pensamentos. Inerte, deita a cabeça na almofada, tensiona o músculo do pescoço, estica o braço direito, gasta algumas células de energia no último esforço do dia: celular - 8:00.

4 comentários:

  1. Pode-se dizer que o colóquio de hoje é uma inversão da maneira tradicional de pôr o problema das relações entre o teatro e os cultos de possessão.
    A maneira tradicional: como da orgia saiu a convenção teatral? Por qual processo o calor foi “resfriado” em regras estéticas? Não seria porque já na crise de possessão, o homem modela o seu delírio de acordo com quadros fornecidos pela história mítica, por conseguinte desempenha um papel? E assim, o teatro não sairia do transe ele mesmo, mas daquilo, que no transe, é mimesis e não convulsão consagrada, ou, se prefirir, do ilins de Roger Caillois.
    Ora hoje, com o teatro selvagem, assiste-se a um fenômeno oposto: a passagem da regra ao desregramento - da palavra ao grito inarticulado - do jogo dos papéis à pura vertigem. O que faz com que nos perguntemos se o teatro não retorna às suas origens - na medida precisamente onde é contestação de qualquer civilização, ou seja de todo o universo de regras - se não ao culto de possessão propriamente dito, pelo menos ao transe sem deus. Retorna à matriz original da qual saíram o xamanismo, o culto de possessão, o messianismo ou movimentos proféticos, por “resfriamento” progressivo.
    Que não nos espantemos de ver introduzido aqui o messianismo, pois o protesto contra o mundo das regras toma hoje duas formas: aquela da violência militarista, da não-cooperação, da recusa da produção (recusa da produção industrial ou do consumo burguês), de toda abstenção de qualquer vida social que definem os movimentos messiânicos – como em segundo lugar aquele do delírio, do transporte individual ou coletivo, da perda do “eu” na instantaneidade de um momento de festa - que nos faz ultrapassar o culto da possessão, para conduzir à estados de efervescência que Durkhein descreveu, e que ele vê na origem de toda religião.
    Pesquisa, pois do transe e não da possessão. Para melhor dar-nos conta, devemos nos ater um momento sobre os cultos de possessão para ver, além dos mitos e das regras litúrgicas, o lugar do transe.

    Os cultos de possessão não ignoram o transe selvagem – nem a selvageria do transe. Eles não ignoram o transe selvagem. Ele é um dos critérios (há outros como a doença, o sonho, a descoberta de um objeto bizarro...) da vontade dos deuses de “montar” sobre os homens. Brasil: o transe pelo deus “não batizado”. Haiti: o transe pela “loa bossale”
    Mas justamente os cultos de possessão não podem aceitar este transe. E logo ele se manifeste, será preciso rapidamente “recuperá-lo”, fazê-lo entrar no mundo das convenções e das regras - será preciso socializá-lo para poder controlá-lo e manipulá-lo em vista de bem servir a comunidade – o transe selvagem é uma forma pura, sem conteúdo (dissemos anteriormente: uma matriz), será necessário dar-lhe uma matéria fornecida pela tradição religiosa da etnia (achamos fenômenos análogos no misticismo cristão; o papel dos diretores de consciência é fornecer ao transe místico um conjunto de representações coletivas herdadas do passado cristão).
    Esta socialização do transe obedece a duas postulações: uma individual, o transe está próximo da loucura, se ele não é regrado, ele é perigoso para a pessoa; da onde a cerimônia do bori, que tem a finalidade de fortificar a cabeça, e de impedir a descida de um deus (ou de deuses), capaz de provocar danos à saúde mental do fiel. A outra coletiva, o transe selvagem não serve pra nada, ele não traz nenhuma mensagem, ele é simples sintoma de um desejo divino, ele não é ainda uma linguagem, articulada muscularmente, que permite a comunicação da natureza com o sobrenatural.
    A socialização se dá por meio da iniciação que é uma manipulação pelos pais da capacidade de cair em transe para modelar este transe através: a) Um sistema mítico: cada Deus tem um certo rosto e uma certa história. Lá onde a história é esquecida, como no Vodou haitiano, o transe do Loa batizado: reprodução do “caráter” do deus (Ogum: a violência, Erzulie: o amor sensual) – lá onde a história é conhecida, como no candomblé brasileiro ou a santaria cubana: reprodução dos mitos (assim a pessoa possuída por Xangô passará entre a pessoa possuída por Ogun et aquela possuída por Oxum quando estes dois dançam muito perto um do outro, pois Ogum e Xangô são dois irmãos que disputam os favores de Oxum). Assim a cerimônia religiosa torna-se mimesis, por conseguinte jogo de papéis, que lhe dá o seu caráter teatral. b) Uma educação da expressão corporal: aprendizado das danças, dos gestos, ligação com os ritmos musicais, montagem do que podemos chamar segundo Lévi-Strauss, de um conjunto ordenado segundo certas seqüências de “maços” de relações motoras. Toda a religião africana e afro-brasileira é, pois dirigida contra o transe selvagem. Ela é quase um antitranse.
    Podemos dar algumas provas:

    1 Quando o transe é muito violento, podendo por conseqüência trazer alguma perturbação à cerimônia, o “pai” ou a “mãe de santo” o acalma (mão sobre a nuca, assopro nas orelhas); é preciso quebrar a resistência do corpo para torná-lo um cavalo dócil à vontade de seu cavaleiro divino.

    2 O transe não é jamais epidemia coletiva, provocado pela música, a fadiga, o enervamento – não se tomba em transe, assim que se escuta a música de seu deus: o momento, como a forma do transe, são determinados liturgicamente.

    3 É de “mau tom” cair em transe fora do candomblé onde se foi feito: podemos certamente assistir à cerimônias de outras confrarias religiosas, ver e dançar, mas jamais ser “montado”.

    O transe nos cultos de possessão não é, pois arrancado do mundo das regras – ele é sempre “domesticado”.
    Entretanto, para o espectador, certo número de transes podem parecer violentos e selvagens. Mas é preciso ter atenção. Três casos possíveis:

    1 Se o transe é mimesis da história do deus, há deuses violentos como Ogum, e deuses amáveis que têm seus momentos de maldade como Eshu ou Legba. O transe dos cavalos daqueles deuses divinizados serão transes ‘violentos”, espetaculares, mas como vimos, é preciso distinguir violência de selvageria. A violência não é espontânea, ela ainda aqui obedece a uma regra, uma regra estabelecida pelos mitos.

    2 Há alguns iniciados que não seguem todos seus deveres para com suas divindades – ou que não respeitam a autoridade de seus “pais” e “mães” de santos”. Eles vão pois ser punidos. Suas crises vão ser extremamente violentas. São os cânticos chamados “cânticos de couro” (por alusão aos chicotes com correias de couro), ou ainda em africano telebe que fazem entrar os iniciados desrespeitosos em crises violentas. Mas aqui ainda a selvageria da crise na vai contra as regras, ela é sanção da regra violada.

    3 Enfim, por um estudo comparativo, indo do candomblé yoruba ao candomblé bantou e à macumba, nós pudemos estabelecer uma lei: que a selvageria da crise vai junto com o relaxamento do controle social – com a entrada dos brancos em grande número no círculo de espectadores, com a comercialização progressiva da religião como espetáculo - que ela é pois um fenômeno patológico em relação à religião tradicional. Mas aqui ainda, a selvageria não é totalmente destituída de regras, ela é “variação” que brinca ao redor das regras, com momentos breves de loucura se escorregando então dentro dos interstícios entre duas regras.

    Mas aquilo que talvez nós não tenhamos ressaltado nos livros e artigos que escrevemos sobre o tema (porque era preciso combater a opinião dos psiquiatras que viam no transe africano ou afro-americano apenas como simples manifestações de histeria coletiva), é que a regra não impede a espontaneidade. Ou, se preferirmos, que a repetição não impede o jogo livre de imaginação criativa.
    Nesta perspectiva, podemos dizer que um certo número de autores como Leiris, Métraux, insistiram sobre a função de espetáculo nos cultos de possessão. Mas trata-se de uma função secundária e que excede amplamente os cultos de possessão neste sentido que: a) Esta função vale apenas para cerimônias públicas, sendo que o que caracteriza estes cultos, é que não há muitas cerimônias publicas no ano; a grande parte das atividades é de ordem privada, quase cotidiana; o transe mesmo não é privativo das cerimônias públicas, ele existe também no interior do grupo doméstico, cada vez que o deus tem necessidade de deixar uma mensagem pessoal a seu fiel; b) em segundo lugar, não são os cultos de possessão enquanto cultos de possessão que têm uma função lúdica. Lá possessão é coisa muito séria. É por isso que organizam tantas festas e – como Durkheim bem notou – são os elementos da festa que permitem ao lúdico aparecer.

    Onde intervêm nas nossas confrarias afro-americanas?
    Em primeiro lugar, nas danças, nos cantos ou na música. Os espectadores comuns do candomblé sabem bem distinguir os bons dançarinos dos maus, os percussionistas hábeis dos menos hábeis, e apreciar a qualidade das vozes dos cantores. A espontaneidade intervém, pois na fioritura, na ornamentação coreográfica, mas ela se realiza apenas no quadro fornecido pela tradição dos gestos ou das palavras ou dos ritmos impostos.
    Em segundo lugar, e, sobretudo em certas cerimônias como o panam que fecha o ciclo de iniciação. Durante o panam, a nova filha de santo que esqueceu sua personalidade anterior vai reaprender os gestos da vida cotidiana que lhe permitem se reintegrar no seu grupo doméstico e na sociedade global. Uma grande margem de improvisação é ainda deixada para esta filha, encorajada pelos risos do público; por exemplo, a uma macaqueará o ato sexual, uma outra os gestos da mãe com seu bebê...
    Mas é preciso destacar que no panam as novas esposas dos deuses estão em estado de erê, ou seja, em transe ligeiro ou semi-transe e não em transe absoluto. Não seria o mesmo que dizer, senão que a invenção necessita de um mínimo de lucidez intelectual e um “eu” estruturado?
    Mas vemos que aqui também a espontaneidade dos gestos inscritos no quadro de uma seqüência obrigatória. Se queremos a todo preço aproximar o culto de possessão do teatro, devemos o aproximar do tipo Commedia dell’ arte ou a improvisação dos indivíduos é aceita apenas tomada na trama de um plano obrigatório.
    Certas formas atuais do teatro se aproximam certamente das manifestações de efervescência que Durkheim coloca na origem do sentimento religioso (se bem que a leitura de Durkheim não mostra aquilo que tenta provar – mostra exatamente o contrário – que o social controla o religioso: gritamos ou choramos em horas determinadas. Marcel Mauss tem razão contra Durkhein), mas os cultos de possessão – ao menos os africanos, no espaço onde a colonização não deturpou os cultos – e afro-americanos, ao menos no espaço onde restou a tradição - são exatamente o contra pé do teatro do transe.
    O transe africano ou afro-americano é uma linguagem (às vezes motora e vocal) que se desenvolve segundo um certo código; tem seu vocabulário, suas regras gramaticais e sua sintaxe. O transe dos nossos ocidentais é uma recusa da linguagem – alguns psiquiatras ou psicanalistas poderão decodificá-la, pelo fato do transe, mesmo o mais violento, o mais louco, obedece a um determinismo, aquele do inconsciente e dos seus complexos.
    O transe africano ou afro-americano pertencem aos domínios do sério; pode ter é certo efeitos catárticos, mas essa não é sua finalidade ou função. Longe de ser loucura, ele é condicionamento; e o definimos exatamente como reflexo condicionado. Nosso transe ocidental ao contrário é vertigem, embriaguez; ele pertence aos domínios do lúdico. Sem dúvida nossos modernos amantes do teatro selvagem podem copiar – voluntariamente copiar - certos dados trazidos pelos nossos historiadores das religiões ou etnógrafos: a orgia dionisíaca, a pintura corporal (como substituto do desejo de se sujar com excrementos e de se lambuzar de merda), o travesti...
    O transe africano ou afro-americano é um instrumento de controle social: controle dos anciãos sobre os jovens, controle dos chefes sobre seus subordinados. Mesmo onde desempenha um papel de renovação política, por exemplo, em certos países da África onde os chefes manipulam transes de modo que os Deuses reclamem das massas campesinas a construção de novas estradas, mudanças nas técnicas agrícolas, etc este papel de instrumento de desenvolvimento econômico e social é possível apenas porque o transe africano é sempre controlado. Ao contrário o transe ocidental contemporâneo é uma forma de protesto ou de contestação contra o mundo das regras, das normas e dos valores. Ele é revoltado contra a sociedade. A política vem em primeiro lugar.
    Mas – e aqui cessarei a descrição dos fatos para portar um julgamento – justamente porque é revolta, ele só pode ser um transe falho. Vai para a histeria ou a crise epilética ou a epidemia dita anteriormente demoníaca. Não há criação verdadeira que no constrangimento às regras. No lugar de criar uma nova linguagem, não há mais do que aquele que fala, ou seja que a revolta contra o social termina numa profunda alienação em seus próprios complexos. Se não se quer mais repetir os gestos dos deuses, não se cessará de repetir algo mesmo assim: mas repetiremos os traumas da infância, que não têm nenhum interesse (salvo para o psicanalista). È certo que há na nossa história transes selvagens que têm uma função de protesto, por exemplo no século XVII as epidemias de crises demoníacas em volta da política centralizadora de Richelieu, mas que terminaram finalmente por fazer triunfar o poder real sobre a contestação pela classe dos nobres. È o que me faz, para terminar esta exposição, colocar a questão: a quem interessa a alienação de nossos adolescentes? A luta contra a injustiça e a guerra é coisa muito séria – como a religião – para se apoiar sobre gritos inarticulados e gestos convulsivos, imediatamente recuperados pela sociedade de consumo contra a qual crêem lutar, mas que os retomam em seu proveito.

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  2. Roger Bastide, Discipline et spontanéité dans les transes afro-americaines, in Lê Revê la Transe et la Folie, ed. Flammarion, Paris 1972

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  3. Raoni para começar do começo.


    CAPÍTULO I

    APRESENTAÇÃO DO CANDOMBLÉ

    Ao longo do litoral atlântico, ediário entre os homens e os deuses. da floresta Amazônica até a fronteira com o Uruguai, é possível descobrir no Brasil sobrevivências religiosas africanas. Mas a Bahia continua a ser a cidade santa, com seus candomblés (1) onde, nas noites mornas dos trópicos, as filhas de deus dançam sob o “martelamento” surdo dos tambores. Estes candomblés pertencem às mais diversas nações e perpetuam, por conseguinte, tradições diferentes: Angola, Congo, Gêges, Nagôs (termo dado pelos franceses a todos os negros da Costa dos Escravos que falavam yoruba), Quêto (ou Ketu), Ijêxas (ou Ijesha). É possível distinguir estas “nações” umas das outras pela maneira de tocar o tambor (com a mão ou com a ajuda de baquetas), pela música, a língua dos cânticos, as vestimentas litúrgicas, o nome das divindades (às vezes), certas marcas do ritual enfim. Embora a influência dos Yoruba domine sem contexto o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias, e sua metafísica, aos do Daomé e aos Bantos (2). Fica evidente, entretanto que os candomblés Nagô, Quêto e Ijêxas, são os mais puros de todos, e serão os únicos que estudaremos aqui.
    Por um outro lado, encontramos “nações” yoruba em outras regiões do Brasil: de São Luiz do Maranhão, passando por Recife, ao Rio Grande do Sul. O grupo do Maranhão, bastante isolado, sofreu a influência da Casa das Mina, do Daomé, que é o grupo dominante da cidade (3). Por esta razão, nós o deixaremos inteiramente de lado. Em contrapartida, na medida onde as informações de recife e do Rio Grande do Sul completam ou confirmam as observações da Bahia, acontecerá por vezes de recorrer aos dados tirados dos Xangô de Recife ou das “nações” Nagô e Oyo (do nome da região Yoruba) de Porto Alegre (4). No Rio de Janeiro, as “nações” se fundem umas nas outras, se deixam também penetrar profundamente por influências exteriores, ameríndias, católicas, espíritas, para dar nascença a uma religião essencialmente sincrética, a macumba. Mas, ainda há poucos anos, no início do século XX, existia uma religião nagô autônoma, a qual temos algumas descrições, infelizmente bastante sumárias (5). Estes documentos sem dúvida têm hoje apenas um interesse histórico, contudo não os negligenciaremos. Mas que fique bem entendido que nosso estudo, mesmo se leva em conta por vezes dados recolhidos por nós ou por outros pesquisadores em outras cidades, é centrado unicamente sobre os candomblés nagô, quêto ou ijêxas da Bahia.
    Existiram outrora candomblés em pleno centro da cidade. A igreja da Barroquinha se eleva no lugar mesmo onde, no fim do século XIX, existia um santuário africano. Existe ainda na periferia da aglomeração, no bairro da Liberdade, proletário, por entre as casas dos operários, num emaranhado de muros, de ruelas, de pátios mal cheirosos. Mas se agrupam em geral longe do centro da cidade, nos vales sombreados, junto aos flancos das colinas, ou entre as dunas marinhas, escondidos em árvores, nos tufos da bananeira, se abrigando à sombra dos coqueiros. Ao longo do Rio Vermelho, na Mata escura, São Caetano, Cidade de Palha, Língua de Vaca, Pedreiras, Fazenda Grande do Retiro, Fazenda Garcia... Cercam a cidade com uma coroa mística sem outra solução de continuidade que a fachada movente do Oceano. O viajante que vagueia e escuta, à noite, nestes arrabaldes onde as habitações desfazem-se, cedem pouco a pouco lugar à floresta, do fundo das trevas vegetais, o ribombo surdo dos tambores sagrados, enquanto foguetes irrompem no céu para criar outras estrelas. Cada foguete é o sinal que um deus veio da África, para possuir sobre a terra do exílio, um de seus filhos; cada estrela que estala acima da germinação das plantas indica ao passante que uma divindade “montou” seu cavalo e o fez voltar, mergulhado na noite do êxtase, em torno do poste central. Pois os deuses africanos não podem viver senão na medida em que reencarnam em seus fiéis. E é por isso que o centro do culto público é a crise da possessão. Ela constitui o momento mais dramático e não espanta, nestas condições, que a atenção dos pesquisadores seja concentrada antes de tudo neste aspecto do candomblé. Ainda mais que a maioria dos africanistas sejam ao mesmo tempo médicos. Veremos que na realidade, a festa pública não é mais que uma pequena parte da vida do candomblé, que a religião africana colori e controla toda a vida de seus adeptos, que o ritual privado é mais importante que o ritual público, e na medida onde o negro é africano, ele pertence a um outro mundo mental. È justamente este mundo das representações coletivas que vamos descrever. Não resta a menor dúvida que a religião só pôde subsistir pela existência das confrarias de “filhos e filhas (as filhas muito mais numerosas) de deus” (filhos de santo) (7) e que a função destes filhos e filhas é poder reencarnar, no curso de grandes festas públicas, os Orixás (8) de seus ancestrais. Devemos então começar nossa apresentação do candomblé pela descrição desta cerimônia central.
    Cada uma destas festas é dedicada à uma divindade especial, se bem que todos os Orixás se manifestem por crises extáticas, com seus traços específicos. Podemos deixar entretanto, momentaneamente, estes elementos de variação, pois eles não impedem a unidade das seqüências rituais. Eles a enriquecem somente; eles bordam sobre um mesmo plano, a diversidade dos mitos africanos. Distinguiremos, pois partindo da aurora, onde começa a festa, os momentos seguintes:

    I. O Sacrifício. Esta parte do ritual não é secreta propriamente falando. Mas nela se encontram em geral um pequeno número de pessoas, todas membros da seita. Teme-se sem dúvida que a vista do sangue fortifique nos não iniciados os estereótipos correntes sobre a “crueldade” ou o “caráter supersticioso da religião africana. O sacrifício é realizado pelo axôgun ou achôgun. O objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda segundo o deus o qual é oferecido, “animal de duas patas” ou “de quatro patas”, segundo a terminologia tradicional, galinha, pombo, bode, carneiro... etc. O sexo da besta sacrificada deve ser o mesmo do da divindade que recebe o sangue espalhado; e a maneira de o matar varia igualmente de caso a caso: extirpação da cabeça, esquartejamento dos membros, sangramento da carótida, golpe sobre a nuca, tudo com uma “faca virgem”. Na realidade, seria necessário falar não de um mas de dois sacrifícios; qual seja o deus adorado, Exú, por razões que veremos mais adiante, deve ser o primeiro a ser servido.
    Há, portanto um primeiro sacrifício, de um “animal de duas patas”, para Exu. E em segundo lugar, de um “animal de quatro patas” para a divindade a qual se celebra a festa.

    II. A Oferenda. O animal sacrificado passa das mãos do achôgun às da cozinheira que vai preparar os alimentos dos deuses. A moela, o fígado, o coração, os “pés”, as asas, a cabeça e, que fique entendido, o sangue lhes pertencem de direito; mas o resto do animal não é desprezado, é cozinhado e uma parte do preparo será colocado em pratos diante dos lugares reservados às divindades. Se matam dois frangos, um deve ser obrigatoriamente fervido e o outro assado (9). Mas a cozinheira, chamada iya-bassê ou abassá, que não tem regras nesse momento, não se limita apenas ao preparo do animal sacrificado. Faz todos quantos pratos houverem para os deuses, o amalá de Xangô, o frango ao xinxin de Oxun, o arroz sem sal de Oxalá, etc. ela dá ainda de comer sucessivamente às diversas pedras sagradas (morada dos deuses). O resto da refeição será consumida no fim da cerimônia pelos fiéis, mesmo os simples visitantes. São os descendentes de africanos que têm ainda mantido através dos tempos a cozinha religiosa africana, que passou por sua vez dos santuários aos salões da burguesia, que penetrou na cozinha profana e que é uma das glórias da Bahia. Momento raro esse quando, como assinala A. Ramos, uma mulher negra vos oferece um desses suculentos pratos, onde o fogo da pimenta se harmoniza com a doçura do azeite de dendê, e diz: “Mange, meu santo”.

    III. O padê de Exu. O sacrifício é feito pela manhã; os preparativos culinários e a oferenda às divindades ocupam a tarde; a cerimônia pública propriamente dita começa ao cair do sol para se prolongar até tarde da noite. Ela começa obrigatoriamente pelo padê de Exu, o qual damos por vezes, nos candomblés bantous particularmente, uma falsa interpretação. Exu, é o diabo; poderia tumultuar toda a cerimônia se não lhe rendêssemos homenagem. É necessário, pois trata-lo bem, para que não haja rixa entre os deuses e consequentemente chegue a polícia (no caso de perseguição religiosa); daí o nome despacho que muitas vezes empregamos no lugar de padê. Na realidade Exu é o Mercúrio africano, o intermediário necessário entre o homem e o sobrenatural, o intérprete que conhece a língua dos mortais e a dos Orixás. É pois a Exu que encarregamos - e o padê não tem outra finalidade - mandar aos deuses da África o apelo de seus filhos do Brasil.

    Este padê é celebrado por duas filhas de santo as mais velhas na seita, a dagã e a sidagã, ao som de cânticos em língua africana cantados sob a direção da iya têbêxê e sob o controle do babalorixá, diante de uma garrafa de água e um prato contendo a comida de Exu. Esta garrafa e este prato serão levados para o lado de fora da sala onde vai se desenvolver o resto da cerimônia, em geral em encruzilhadas, que são um dos lugares favoritos de Exu. A festa propriamente dita, pode começar. Mesmo o padê se endereçando a Exu, comporta também obrigatoriamente uma prece aos mortos ou os ancestrais do candomblé.

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  4. (1) Onomatopéia "termo que primitivamente significava dança e instrumento de música e, por extensão, passou a designar a própria cerimônia religiosa dos negros. No Uruguai e na Argentina, o termo candomblé subsistiu, com a significação geral de "dança dos negros".

    (2) Sobre as razões desse domínio yoruba, ver A. Ramos (introdução a Antropologia Brasileira) e Luiz Vianna Filho, (O Negro na Bahia)

    (3) Octavio da Costa Eduardo, The negro in Northern Brazil

    (4) O Xangô do Recife foi estudado por Gonçalves Fernandes, (O Batuque de Porto-Alegre)

    (5) João do Rio, As Religiões no Rio

    (6) Nos fixamos sobretudo no estudo dos elementos que foram negligenciados anteriormente: o culto dos mortos, a divinação, a colheita das ervas, etc. Publicamos descrições em vários livros e artigos. deixamos propositalmente de fora a interpretação da metafísica "nagô" nesta publicação, deixando entrever ao leitor o carater não primitivo da religião brasileira.

    (7) Filho de Santo se deve traduzir literalmente por "fils de Saint". Cada divindade africana, em efeito, como mostramos na tese principal, é ligada a um santo católico. Negligenciaremos neste estudo, este aspecto do problema, e por isso usaremos sempre a expressão, "fils" ou de "cheval des dieux".

    (8) Nome dos deuses nagôs por oposição aos Voouns do Daomé, aos Caboclos ou Encantados dos meios indígenas.

    (9) Informação dada por Antonio Romão e Brito da Silva a Luiz Saia.

    (10) Encontramos indicações sobre como preparar os diversos pratos em "Costumes africanos ' Manuel Quirino. Sobre o caráter religioso dos pratos, ver r. Bastide, "A cozinha dos Deuses".

    (11) a. Ramos, O Negro Brasileiro.

    (12) R. Bastide, "Imagens".

    (13) a melhor descrição do padê se encontra em E. Carneiro, Candomblés da Bahia.

    08 April, 2006 03:49

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