quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Os grupos sociais

Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 2006.

No dia da refilmagem do M A M, conversei um bocado com o Anderson Quack. Algumas coisas me chamaram atenção: ele se referiu na conversa o que identifiquei como abismo existente entre projetos sociais e a população em que eles são realizados. Se mostrou preocupado porque a população da CDD se interessava pouco pelos projetos da CUFA. Outra coisa que disse também é que eles mantem contato com a prefeitura, mas ao reclamar de algumas condições do local, recebem a seguinte resposta da responsável, logo após (ela) admitir a incapacidade do stado1 em oferecer melhores condições: “tudo que a prefeitura faz é de coração”. Curiosamente, debatemos naquele curto espaço de tempo questões que estão matutando a um tempo na minha cabeça, e o Quack reforçou minhas conclusões sobre os temas.

Discordo que o Afroreggae tenha sido um grupo cultural que impôs sua música, seu movimento, à sociedade. De uma certa forma, acho que foi um movimento de mão dupla: a sociedade também adotou o GCAR. Ainda no início, quando a banda ainda tinha pouca identidade musical, a Caixa Econômica Federal já apoiava o projeto, assim como músicos e icones da nossa cultura. A rede Globo de televisão também deu (e ainda dá) seu apoio midiático ao GCAR, desde muito tempo.
Mas o que representa o trabalho do GCAR na atual conjuntura da sociedade carioca? Acho que esse projeto é um grão de areia em Ipanema, uma gota d`água no Amazonas. Diante da conjuntura é importante que algo ou alguém tome uma atitude e, quando isso acontece, prestamos nossa admiração e apoio diante daquele que, a principio, luta por melhorias sociais, ainda que essa luta seja de um grupo restrito dentro da favela.
Com um trabalho sério e muito mérito o trabalho do GCAR cresceu e, após treze anos, muita coisa mudou: Os paradigmas em que o grupo se encontra já se modificaram diante das próprias conquistas e da sociedade. No entanto, o LG repete hoje uma coisa que falava a seis anos atras: “que o Afroreggae leva ao mundo a bandeira do jovem negro de periferia que deu certo”. Está no material de arquivo digitalizado e está no nosso clip. Os paradigmas mudaram e o LG não percebeu. E a sociedade discute isso como se fosse novidade o que é fato corriqueiro da História do Brasil: a miséria, a expropriação do outro, o abismo entre governo-poder-povo: a morte. Afinal, o que significa a expressão “o jovem negro de periferia que deu certo”?
Não há histórico de conquistas sociais relevantes dentro de uma sociedade sem luta. A luta não necessariamente necessita ser bélica, mas é obrigatório um enfretamento e a proposição.
Apartir do momento que o grupo musical começa a fazer sucesso, automaticamente seus integrantes saem da favela para morar no asfalto. Ninguém disse que é fácil morar lá (favela), mas o que se está procurando não é a facilidade, mas o aprofundamento das questões. Tenho a impressão que, apartir do momento em que saem, o discurso social do grupo se enfraquece. O ideal, na minha opinião é que eles tivessem a possibilidade de sair e ficassem, percebendo a importância de se manter influentes ali naquele espaço: afinal, o “jovem negro da periferia que deu certo”, quando “dá certo”, tem que sair da favela? Todos os Afroreggaes deveriam ficar em VG e mostrar a todos que não precisam entrar no tráfico e nem sair da favela. Deveriam ficar e criar um novo modelo econômico (afinal, todos esses problemas se referem à economia) lá dentro, mas não. Já ouvi um bocado de vezes o discurso de que na favela tem trabalhador, que na favela não tem só bandido. Mas não adianta falar isso e se distanciar da realidade.

Para que existe um sistema de cotas nas faculdades? Para, pouco a pouco, corrigir o abismo de classes criados na nossa História e, para que esses formandos futuramente também possam colaborar nas suas atividades profissionais, direcionando-as ao grupo social de onde vem. Mas, isso funciona? Até a parte de incluir esses privilegiados das cotas no sistema de trabalho, pode até funcionar, embora bem precariamente. Mas, como transformar as cotas em avanço social maior se, apartir do momento que conseguem se incluir no mercado, esses individuos saem de suas comunidades? Me parece que eles automaticamente sobem um degrau na escala social, são absorvidas pela classe social mais alta e seu passado fica para trás, como algo a não ser lembrado.

O GCAR tenta fazer esse papel de mediação de conflitos. Eu não entendo isso. O Grupo como projeto cultural não tem como alcançar toda a população da favela. Nós vimos no Complexo do Alemão mais de 100 mil pessoas, só lá. Então, como projeto, é pequeno demais. É frágil em termos de representatividade também. Quem desses 100 mil se sente representato pelo GCAR, de fato? Como mediador ainda é pior: toda e qualquer conquista vinda do governo ou dos “bandidos” (qual é qual?) será consentida, ou seja, quando for do interesse que tudo volte “ao normal”, voltará, enquanto a população: o trabalhador que fica duas horas no trânsito para trabalhar, a empregada domestica, o estudante das cotas, esses e tantos outros ficarão mudos, olhando o que acontece a sua volta, sem se tornar agentes da sua própria vida, servindo como massa de manobra para quatro poderes: do stado, que coloca seus policiais em nome da lei e da democracia para marginalizar ainda mais essas populacões; os traficantes, que institucionalizam a lei da mordaça para qualquer movimentação e argumentação, exceto de cunho religioso; das igrejas, que massacram e aculturam a população como se o Senhor fosse a única salvação; e das ONGs assistencialistas. E o trabalho de orientação e educação das populações, do direcionamento da insatisfação, do diálogo concreto entre stado-povo, do embate de forças, a mudança concreta e não assistencialista, enfim; está a deriva.
Esse domingo vi o Fantástico, que mostrou bastante reportagens sobre violência. E todas elas apenas mostravam os fatos como errados, mas em nenhum momento quis aprofundar o assunto e, pior, não havia proposição nenhuma nas reportagens. Entre uma reportagem e outra, tinha o futebolzinho do fim de semana ou os Rolling Stones, para aliviar o assunto (não atentando para nenhum ponto negativo do megashow). E do nada aparece o Junior e o GCAR (mas não no tópico Rolling Stones), como exemplo de mudança. Junior, em uma sala com ar-condicionado e uma confortável cadeira, falava o que já ouvimos tantas vezes: que o GCAR quer diminuir o apartheid social existente entre policia e população, mostrando que nas favelas não tem só bandido e que na polícia também não. Mas esse discurso se esvazia apartir do momento que os dois grupos se encontram – defendendo motivos politicos e econômicos - fortemente armados um em frente ao outro. Quando vejo o Junior, não vejo um artista. Vejo um empreendendor de boa vontade, que soube aproveitar as chances que teve. E, para ouvi-lo, ouço apartir desse local, do empreendendor bem sucedido que acredita na mudança, mas construindo muito pouco, de fato.

No momento em que acho necessário o debate e a tomada de decisões e soluções, achei o Cactos Intactos insoso. Tenho a sensação de que eles são é marqueteiros, que sua “guerrilha cultural” é apenas um marketing para se vender

Admiro os Racionais MCs. Tiveram seu trabalho reconhecido pela midia mas resistiram ao apelo midiatico pela sua presença. Ficaram na periferia e lá continuam seu trabalho.



1 – Estado, tira-se o E maiúsculo que lembra poder para ficar stado, que lembra status.

CUFA - Central única das favelas
GCAR - Grupo cultural Afroreggae
CDD - Cidade de Deus
LG - Luis Gustavo, integrante do GCAR

5 comentários:

  1. De que serve a bondade
    Se os bons são imediatamente liquidados,ou são liquidados
    Aqueles para os quais eles são bons?

    De que serve a liberdade
    Se os livres têm que viver entre os não-livres?

    De que serve a razão
    Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?

    2

    ResponderExcluir
  2. Em vez de serem apenas bons,esforcem-se
    Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
    Ou melhor:que a torne supérflua!

    Em vez de serem apenas livres,esforcem-se
    para criar um estado de coisas que liberte a todos
    e também o amor à liberdade
    torne supérfluo!

    Em vez de serem apenas razoáveis,esforcem-se
    para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
    um mau negócio.

    ResponderExcluir
  3. Raonicot.

    Mas uma vez me demorei na escolha das obras musicais, por vários motivos, o acúmulo excessivo de material, a desorganização do mesmo e principalmente ao surto recente quanto à necessidade de analisar a produção atual. Passei os últimos dias pesquisando e sobretudo escutando muita música hodierna, e descobri muita coisa. Nada realmente surpreendente, mas achei grupos e músicos que encararam um trabalho sério, autoral. Mas não teve jeito! Na hora de gravar, reuni em torno de mim, as obras e os artistas recorrentes. Vai aí a lista com os 5 cds. Do pioneirismo quase terrorista do sr. Pierre Henry ao frescor da juventude do Dunn's trio, é a mesma busca, por uma música libertadora, mesmo que não se encontre na vida a liberdade. Mas, a quem mesmo serve a música?

    Trevor Dunn's Trio Convulsant

    Sister Phantom Owl Fish 2004

    1 Liver - colored dew
    2 Empty glass has a name
    3 Specter of serling
    4 Me susurra un secreto
    5 Dawn's early vengance
    6 Single petal of a rose
    7 Salamander
    8 She ossifies
    9 Styrofoam & Grief
    10 I'm sick

    Trevor Dunn, bass
    Mary Halvorson, guitar
    Ches Smith, drums

    Complete Webern - pour Boulez disc 1

    1 Passacaglia for Orchestra op.1
    2-6 5 movements op.5
    7-12 6 pieces for Orchestra op.6
    13 Fuga a 6 voci
    14-15 German dances
    16 Im sommerwind

    Berliner Philharmoniker
    Pierre Boulez, dir.

    Complete Webern disc 2

    1-5 5 pieces for Orchestra
    6-8 3 orchestral songs
    9-10 Symphony 0p.21
    11 Das augenlicht op.26
    12-14 Cantata No 1 op.29
    15 Variations for Orchestra op.30
    16-21 Cantata No2 op.31

    The Life of a Song 2004

    1 Lwb's house
    2 Mounts and Mountains
    3 Lush life
    4 In appreciation
    5 The experimental
    6 Holdin' court
    7 Dance of the infidels
    8 Unconditional love
    9 The life of a song
    10 Black bottom
    11 Soul eyes

    Geri Allen, piano
    Dave Holland, bass
    Jack DeJohnette, drums

    Pierry Henry coletânea

    1 Haut-voltage 1956
    2 Troisième temps: Bête de la mer
    3 Foule
    4 Antiphonie 1951 Composition pour bande magnetique
    5 Le temple est lá
    6 Le temple d'emse
    7 Coexistence 1958 Rondo

    ResponderExcluir
  4. Meu nome é Cacilda e moro em Oswaldo Cruz há cinqüenta e nove anos.

    Antes de vir para cá, eu morava em Santa Tereza, um bairro que guardo na minha memória com muito carinho.

    Minha mãe morreu quando eu tinha cinco anos. Meu pai se casou de novo e nos mudamos para a rua Piúna - nome de uma espécie de pau - brasil -, onde nasceu Carmen Lúcia, minha irmã.

    Antigamente, havia muitas casas com cercas de arame. Eu achava o bairro feio.

    O comércio era fraco, só havia dois armarinhos na rua João Vicente. Madureira, que fica ao lado de Oswaldo Cruz, "explodiu" e virou um centro comercial, enquanto Oswaldo Cruz não tem cinemas, centros culturais nem áreas de lazer, mas eu ficaria feliz se tivesse. A Escola de Samba Portela antes era no bairro, agora também é em Madureira.

    Porém, há um largo muito conhecido por aqui chamado Largo da Fontinha, que guarda uma fonte onde D. Pedro I dava água ao seu cavalo e também bebia com seus companheiros.

    Lembro-me da copa do mundo de mil novecentos e cinqüenta e oito, quando o Brasil foi campeão pela primeira vez. Nunca vi Oswaldo Cruz tão enfeitado e alegre.

    Um fato marcante foi a explosão de um paiol em Deodoro. Muitas famílias corriam e se abrigavam em outros lugares. Dava para ver o céu todo avermelhado.

    Eu estudava na Escola República da Colômbia, na rua Camerino, Praça Onze. O Rio era a capital do Brasil e o Presidente Getúlio Vargas sempre participava do desfile das raças - era assim que se chamava o desfile dos estudantes em sete de setembro. Isso me dava muito orgulho.

    No dia trinta e um de março de mil novecentos e sessenta e quatro houve um golpe que tirou o Presidente João Goulart do poder. Em meio ao quebra-quebra nas ruas, na estação de Engenho de Dentro, os trens pararam enfileirados um atrás do outro. Nesse dia, eu senti um medo que ainda sinto quando me lembro que tive que descer de um deles e caminhar por entre a confusão.

    Ah! Tem vezes que eu sinto uma saudade do meu pai que já faleceu! Ele era um pai tão bom! Contava histórias e além do mais, não batia nos filhos, pois nós já o obedecíamos só pelo olhar dele. Do meu pai, eu só tenho recordações boas.

    Existem três objetos que fazem referência ao meu passado: uma medalha de Nossa Senhora da Conceição, que meu pai ganhou da avó que era escrava - a sinhá, a quem servia, deu para ela. Tem mais de duzentos anos essa medalha!

    Tenho também um anel com a imagem da mesma santa e um coração de pedra que meu irmão, Valter, achou e deu para minha mãe, que antes de morrer passou-a para mim.

    Essas são minhas lembranças - minha maior herança.

    Texto escrito a partir da entrevista com Cacilda Martins Souza, 73 anos, costureira aposentada, moradora da cidade do Rio de Janeiro - RJ.

    ResponderExcluir
  5. Eu falo a partir do lugar de quem sabe muito pouco mais que quer pensar (e não apenas) mais a respeito disso tudo. Uma das coisas que chamou a atenção no seu texto e osbre a qual eu já ando pensando é o perigo que essas Ongs assistencialista representam, na medida em que não realizam nenhuma mudança efetiva, apenas se fortalecem na imagem e conseguem cada vez mais dinheiro para projetos que mudam a vida de quem? E tudo fica com um ar de boa ação então é difícil julgar e dizer “peraí, ta mediando quem, isso serve pra que” a boa intenção acaba sendo um perigo... Fico pensando em ações em pequena escala que mudam a vida de um número muito pequeno de pessoas, mas que mudam alguma coisa. Até porque quais são as ações em grande escala possíveis, a mudança real e concreta? Qual é? O Fantástico mostra as imagens entre momentos de descontração, todo mundo se apieda, comenta no jantar de segunda-feira e acabou. O Afroreggae foi completamente aceito e incorporado ao sistema, tanto que saíram da margem, saindo da favela. Buscar alternativas que permitam que eles continuem lá... Concordo, mas é tão utópico, porque como seja o músico ou o estudante de cotas, assim que se afirmar vai sair da favela e lá vão continuar os traficantes, os trabalhadores que não conseguiram, as ongs, a igreja. Enfim, não sei nada. Não vislumbro s alternativas maiores, infelizmente...

    ResponderExcluir